A pessoa jurídica acusada: algumas questões processuais penais
Ainda que se admita a constitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica (o que não é o nosso caso, o certo é que esbarraríamos em um obstáculo: a Lei 9.605/98 não estabeleceu qualquer regra procedimental ou processual a respeito de um processo criminal em relação a uma pessoa jurídica, o que torna absolutamente impossível a instauração e o desenvolvimento válido de uma ação penal nestes termos
Por | Rômulo Moreira
Ainda que se admita a constitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica (o que não é o nosso caso (1)), o certo é que esbarraríamos em um obstáculo: a Lei 9.605/98 não estabeleceu qualquer regra procedimental ou processual a respeito de um processo criminal em relação a uma pessoa jurídica, o que torna absolutamente impossível a instauração e o desenvolvimento válido de uma ação penal nestes termos.
Evidentemente que o nosso Código de Processo Penal é um diploma dirigido a estabelecer regras para um processo penal cujos acusados são pessoas físicas; todos os seus dispositivos assim foram pensados.Ora, se as normas penais não podem ser aplicadas diretamente, pois o Direito Penal não é meio de coação direta, evidentemente que seria indispensável estabelecer-se o respectivo procedimento, adequado a esta nova realidade.
Observa-se que em França, ao contrário do Brasil, procurou-se adaptar as regras processuais penais à possibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Naquele país, promulgou-se a Lei 92-1336, de 16 de dezembro de 1992, a chamada Lei de Adaptação, acrescentando ao Code de ProcédurePénaleo Título XVIII, sob a seguinte epígrafe: “De lapoursuite, de l´instruction et dujugementdesinfractionscommises par lespersonnesmorales.”
O legislador francês neste título tratou de estabelecer as regras atinentes à acusação, instrução e julgamento das pessoas jurídicas. Assim, por exemplo, o art. 706-42 trata da questão relativa à competência; já o art. 706-43 trata de estabelecer que a ação pública é exercida contra o ente moral na pessoa do seu representante legal à l´époque dês poursuites.O art. 706-44 estabelece que “o representante da pessoa jurídica processada não pode, nessa qualidade, ser objeto de nenhuma medida de coação, a não ser aquela aplicável à testemunha.” O art. 706-45 prevê uma série de obrigações às quais pode lejuge d´instructionsubmeter a pessoa jurídica.
Esta mesma Lei de Adaptação modificou os arts. 555, 557 e 559 do Code de ProcédurePénale. O art. 557, por exemplo, afirma que o domicílio da pessoa moral se entende como sendo o do local de sua sede.
Em nosso País nada disso ocorreu, muito pelo contrário, razão pela qual o Professor RENÉ ARIEL DOTTI afirmou com muita propriedade que “os corifeus e os propagandistas da capacidade criminal das pessoas coletivas ainda não se dedicaram ao trabalho de analisar as consequências desse projeto no quadro do processo penal.” (2)
Vejamos, por exemplo, algumas dificuldades que existem quando se trata de um processo penal cujo acusado é uma pessoa jurídica.
1) A quem serão dirigidos os atos processuais de cientificação: citação, intimação e notificação?Ao Presidente da empresa ou a quaisquer dos seus diretores? Note-se que em França o art. 555 foi modificado para estabelecer expressamente o regramento das citações da pessoa jurídica.
2) Quem será interrogado?Teria ele o direito ao silêncio e o direito de não autoincriminação? Sabe-se que o interrogado tem também o direitoindiscutível de não se autoincriminar e o de nãofazerprovacontrasimesmo, emconformidadecom o art. 8.º, 2, g, do Pacto de São José da CostaRica – ConvençãoAmericanasobreDireitosHumanos, de 22 de novembro de 1969 e art. 14, 3, g, do PactoInternacionalsobreDireitos Civis e Políticos de Nova York, assinada em 19 de dezembro de 1966, ambosjá incorporados emnosso ordenamento jurídico, porforça, respectivamente, do Decreto 678 de 6 de novembro de 1992 e do Decreto 592, de 6 de julho de 1992. Já em 1960, o grandeSERRANO ALVES escrevia uma monografiacom o títuloO Direito de Calar (Rio de Janeiro, Editora Fretas Bastos S/A), cujadedicatóriaera “aos queainda insistem na violação de uma das mais belas conquistas do homem: o direito de não se incriminar”. Nesta obra, adverte o autorque “há no homemumterritórioindevassávelque se chamaconsciência. Desta, sóele, apenasele pode dispor. Suainvasão, portanto, aindaquepelaautoridade constituída, seja a quepretexto for e porqueprocesso for, é sempreatentado, é sempreignomínia, é torpesacrilégio.” (p. 151).
3) E a confissão? Será admissível a confissão pelo interrogando (seja ele quem for) em prejuízo, por exemplo, dos demais sócios da pessoa jurídica? A confissão prejudicará os demais membros da corporação?
4) E a revelia? Será possível a decretação da revelia pela ausência injustificada de quem deveria comparecer para o interrogatório? E os demais membros do ente coletivo ficarão prejudicados? É possível a aplicação do art. 366 do Código de Processo Penal, no caso de citação editalícia?
5) E as regras sobre competência? Caso, por exemplo, não seja conhecido o lugar da infração, é possível aplicar-se o art. 72 do Código de Processo Penal? E se uma das pessoas físicas também denunciadas (em coautoria com a pessoa jurídica) tiver prerrogativa de função, aplicar-se-ão as regras de continência (art. 78, III, do Código de Processo Penal c/c o Enunciado 704 do Supremo Tribunal Federal)? A pessoa jurídica seria julgada pelo respectivo Tribunal ou haveria a separação do processo (art. 80, CPP)?
6) Quem teria interesse e legitimidade para recorrer em nome da pessoa jurídica? Apenas aquele que foi interrogado ou qualquer membro do ente coletivo que se sentiu prejudicado com a sentença?
7) Se se tratar de uma infração penal de menor potencial ofensivo, lavra-se o Termo Circunstanciado ou instaura-se o Inquérito Policial? Também nesta hipótese quem poderá em nome da empresa, fazer a composição civil dos danos? E a transação penal?
8) E na suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95) quem poderá aceitar a proposta do Ministério Público?
Evidentemente que são indagações cujas respostas não encontraremos no Código de Processo Penal. Valer-se de outros diplomas legais, como o Código de Processo Civil e mesmo a Consolidação das Leis do Trabalho, parece-nos um exercício hermenêutico de altíssimo risco, tendo em vista a especificidade de cada ramo do Direito.
Como uma possível solução, já que o próprio Supremo Tribunal Federal aceita a responsabilização penal da pessoa jurídica, podemos apontar, por analogia, o art. 26 da Lei nº. 12.846/2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, in verbis:
“A pessoa jurídica será representada no processo administrativo na forma do seu estatuto ou contrato social. § 1o As sociedades sem personalidade jurídica serão representadas pela pessoa a quem couber a administração de seus bens. § 2o A pessoa jurídica estrangeira será representada pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil.”
A respeito destas questões de natureza processual, em conversa informal com o Professor Cristiano Chaves de Farias, civilista baiano de escol (3), foram aventadas algumas questões, a saber:
1) E se o sócio representante da pessoa jurídica confessar, os outros poderão tentar elidir os efeitos da confissão?Entendo que não, pois aquele tinha poderes para confessar em nome da pessoa jurídica, inclusive, escolhido, presume-se, pela maioria dos sócios. Ele sequer teria legitimidade para apelar em caso de condenação, pois o réu é a pessoa jurídica e não um sócio individualmente considerado (art. 577, CPP).
2) Poder-se-ia admitir a desconsideração da personalidade jurídica (Código Civil, art. 50) se o sócio representante da empresa confessar indevidamente ou deixar de aceitar uma transação penal vantajosa para a pessoa jurídica, com base no abuso da personalidade jurídica (disregarddoctrine, disregardentity legal ou disregartheory)? Aqui, entendo não ser aplicável o disposto no art. 50 do Código Civil ao processo penal, pois se trata de outra situação jurídica (James Goldschmidt); ademais, faltaria competência ao Juiz do processo criminal para aplicar tal dispositivo. No caso da transação penal, o sócio também não teria legitimidade para apelar (cfr. art. 76, c/c art. 82 da Lei 9.099/95). Já a sentença que homologa a composição civil é irrecorrível(art. 74, Lei 9.099/95), ressalvados, evidentemente, os embargos declaratórios (Barbosa Moreira e Calmon de Passos).
3) Se a empresa estiver em recuperação judicial, quem irá representá-la em juízo para todos os fins anteriormente problematizados neste trabalho?Para mim, neste caso, será o administrador judicial, conforme art. 22 da Lei de Falências.
Concordo com o ilustrado Professor quando lembra “que o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a responsabilização civil do sócio por excesso de poderes na representação de uma pessoa jurídica. Bem por isso, todos esses excessos comentados poderão ser resolvidos civilmente.”
Outrossim, lembra Cristiano Chaves de Farias “a teoria dos atos ultra vires, segundo a qual os atos praticados por um sócio (mesmo com excesso de poder) que despertam a confiança de um terceiro, geram responsabilidade para a empresa. Assim sendo, se houver celebração de transação penal ou composição civil dos danos pelo sócio, mesmo que havendo excesso de poder, a empresa responderá perante o interessado (Ministério Público ou particular), com direito regressivo contra o sócio que exacerbou.”
Notas:
(1) Veja o que escrevemos a respeito na obra coletiva”Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica”, coordenada por Luiz Regis Prado e René Ariel Dotti, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. edição, 2010.
(2) A Incapacidade Criminal da Pessoa Jurídica, Revista Brasileira de Ciências Criminais, V. 11, p. 199.
(3) Autor do excelente Curso de Direito Civil, publicado pela Editora Jus Podivm: Salvador, já na 10ª. edição (em coautoria com Nelson Rosenvald).
Autor
Rômulo de Andrade Moreira é Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia