Fixação da competência no crime de uso de documento falso: nova Súmula 546 do STJ
O presente artigo tem por objetivo esclarecer qual o critério de fixação de competência para processo e julgamento do crime de uso de documento falso (art. 304, CP) quando praticado por terceiro que não tenha sido responsável pela falsificação do documento. Aplica-se neste caso a nova Súmula 546 do STJ: “A competência para processar e julgar o crime de uso de documento falso é firmada em razão da entidade ou órgão ao qual foi apresentado o documento público, não importando a qualificação do órgão expedidor”. Após a análise dos fundamentos que deram origem à criação desse verbete sumular, esclarecemos também qual o critério de fixação de competência em outros em dois casos: a) crime de falsificação de documento público (art. 297, CP); b) crime de uso de documento falso pelo próprio autor da falsificação
Fonte: Alice Saldanha Villar
1. fixação da competência no crime de uso de documento falso (art. 304, CP)
O crime de uso de documento falso encontra-se previsto no art. 304 do CP:
CP. Art. 304 – Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302: Pena – a cominada à falsificação ou à alteração.
Trata-se de crime formal e instantâneo, que independe de qualquer resultado naturalístico para sua consumação. Sendo assim, a simples apresentação do documento já aperfeiçoa a consumação do delito. [1] É preciso registrar que a falsificação grosseira, notada pelo homem comum, afasta a tipicidade do crime de uso de documento falso, por absoluta ineficácia do meio empregado. Conforme a jurisprudência do STJ: “A falsificação nitidamente grosseira de documento afasta o delito insculpido no art. 304 do Código Penal, tendo em vista a incapacidade de ofender a fé pública e a impossibilidade de ser objeto do mencionado crime.” [2]
No que diz respeito à fixação da competência para processar e julgar o crime de uso de documento falso, indaga-se: a competência deve ser fixada em razão órgão responsável pela expedição do documento, ou em razão do órgão perante o qual o documento é apresentado?
Nos termos do art. 70 do CPP, “a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução”. Desse modo, conforme disposto neste artigo, o crime de uso de documento falso (art. 304, CP) consuma-se no momento da efetiva apresentação do documento falso. A competência será então fixada em razão da entidade ou órgão ao qual o documento foi apresentado, ou seja, a competência é a do local do uso.
Nessa linha, conforme destacou o ilustre Ministro Jorge Mussi: [3]
“A qualificação do órgão expedidor do documento público é irrelevante para determinar a competência do Juízo no crime de uso de documento falso, pois o critério a ser utilizado para tanto define-se em razão da entidade ou do órgão ao qual foi apresentada, porquanto são estes quem efetivamente sofrem os prejuízos em seus bens ou serviços.”
Em suma: tendo em vista que o crime de uso de documento falso se consuma com a apresentação do documento, a competência será fixada em razão da entidade ou órgão perante o qual o documento foi apresentado. A qualificação do órgão expedidor do documento público é irrelevante para determinar a competência do Juízo. Esse entendimento culminou na criação da Súmula 546 do STJ:
Súmula 546/STJ: A competência para processar e julgar o crime de uso de documento falso é firmada em razão da entidade ou órgão ao qual foi apresentado o documento público, não importando a qualificação do órgão expedidor.
Esta regra pode ser aplicada em duas situações, a saber:
1. Se o documento é apresentado perante órgão, entidade ou agente federal, a competência será da Justiça Federal (ainda que o documento seja particular ou expedido por órgão estadual ou municipal). Exemplo: O agente apresenta Carteira Nacional de Habilitação (CNH) falsa a policiais rodoviários federais. Neste caso, apesar do documento ser expedido pelo DETRAN – que é órgão do Poder Executivo Estadual -, a competência será da Justiça Federal. [4]
2. Se o documento é apresentado perante órgão, entidade ou agente estadual, municipal ou particular, a competência será da Justiça Estadual (ainda que se trate de documento expedido por órgão federal). Exemplo: O agente apresenta CPF falso para abertura de conta em bancos privados. Nesse caso, a competência será da Justiça Estadual. [5]
2. Fixação da competência no crime de falsificação de documento público (art. 297 do CP)
O crime de falsificação de documento público encontra-se previsto no art. 297 do CP, verbis:
CP. Art. 297 – Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro: Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa. (…)
O crime previsto no art. 297, caput, do CP se consuma com a efetiva falsificação ou alteração do documento, não se exigindo para a sua configuração, o uso ou a efetiva ocorrência de prejuízo. [6]
A competência será fixada em razão do órgão responsável pela expedição do documento. Exemplos:
1. No caso do crime de moeda falsa (art. 289 do CP), desde que não se trate de falsificação grosseira[7], a competência para o processo e julgamento será da Justiça Federal. Isso porque a competência para emitir moeda é da União – sendo exercida exclusivamente pelo banco central. [8]
2. No caso do crime de falsificação de CNH (art. 297, CP), a competência para o processo e julgamento é da Justiça Estadual, uma vez que a emissão da CNH é de responsabilidade do DETRAN – que é órgão estadual.[9]
3. Fixação da Competência no crime de uso de documento falso pelo próprio autor da falsificação
A doutrina e a jurisprudência são unânimes no entendimento de que o uso do documento falso pelo próprio autor da falsificação configura um único delito, seja, o do art. 297 do Código Penal, pois nessa hipótese o uso é considerado mero exaurimento da falsificação anterior, constituindo post factum impunível (princípio da consunção). Neste caso, a competência ser determinada pela natureza do documento, independentemente da direção da sua utilização.[10]
Conclusão
À luz do exposto, temos o seguinte quadro:
• No crime de falsificação de documento (art. 297, CP), a competência é fixada em razão do órgão expedidor do documento.
• No crime de uso de documento falso (art. 304, CP), temos duas hipóteses distintas para a fixação da competência:
a) Se o crime de uso de documento falso foi praticado por terceiro que não tenha sido responsável pela falsificação do documento: a competência é fixada em razão da entidade ou órgão perante o qual o documento é apresentado, não importando a qualificação do órgão expedidor. Aplica-se a Súmula 546 do STJ.
b) Se o crime de uso de documento falso foi praticado pelo próprio autor da falsificação: o agente responderá apenas pelo crime de falsificação. Logo, a competência é fixada em razão do órgão expedidor do documento.
NOTAS
[1] Cf., nessa linha, dentre tantos outros: TRF-1 – ACR: 136267520104013200, Des. Federal HILTON QUEIROZ, 4ª Turma, DJ 21/08/2014; TJ-MG APR: 10568110004989001 MG , Rel. Jaubert Carneiro Jaques, Câmaras Criminais / 6ª CÂMARA CRIMINAL, DJ 23/01/2015
[2] Cf. REsp 838344 RS, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU 14/5/2007; REsp 1196067, Rel. Min. Haroldo Rodrigues (Des. convocado do TJ/CE), DJ 28/09/2010
[3] Cf. STJ – CC 99105 RS, Rel. Min. JORGE MUSSI 3ª Seção, DJe 27/02/2009
[4] Nesse sentido: “(…) 1. A qualificação do órgão expedidor do documento público é irrelevante para determinar a competência do Juízo no crime de uso de documento falso, pois o critério a ser utilizado para tanto define-se em razão da entidade ou do órgão ao qual foi apresentada, porquanto são estes quem efetivamente sofrem os prejuízos em seus bens ou serviços. 2. In casu, como a CNH teria sido utilizada, em tese, para tentar burlar a fiscalização realizada por agentes da Polícia Rodoviária Federal, que possuem atribuição de patrulhamento ostensivo das rodovias federais, resta caracterizado o prejuízo a serviço da União, justificando-se a fixação da competência da Justiça Federal, consoante o disposto no art. 109, inciso IV, da Carta da República. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 3ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul, o suscitante. (…)” STJ – CC 99105 RS, Rel. Min. JORGE MUSSI, 3ª SEÇÃO, DJe 27/02/2009
[5] Neste sentido: “(…) FALSIFICAÇÃO DE CPF. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. 1. Compete à Justiça Estadual processar e julgar o feito, quando ausente qualquer ofensa a interesses, bens ou serviços da União, suas autarquias ou empresas públicas, nos termos do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal . 2. O simples fato do órgão expedidor do documento falsificado (CPF) ser federal não atrai a competência para referida esfera, notadamente se aludido registro foi utilizado na abertura de conta em Bancos privados, não havendo prejuízo à União. (…)” STJ – CC 137208 PR, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ 25/03/2015
[6] Cf. STJ – HC 57599 PR, Rel. Min. FELIX FISCHER, 5ª Turma, DJ 18/12/2006
[7] Tratando-se de falsificação grosseira, aplica-se a Súmula 73 do STJ: “A utilização de papel moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, da competência da Justiça Estadual”.
[8] Nesse sentido: “(…) 1. A utilização de papel-moeda cuja falsificação é considerada de boa qualidade pela perícia caracteriza, em tese, crime de moeda falsa, da competência da Justiça Federal. 2. Conhecido o conflito para declarar competente o Juízo Federal da 9ª Vara Criminal de Belo Horizonte/MG, o suscitado. (…)”STJ – CC: 109195 MG 2009/0228736-8, Relator: Ministro Haroldo Rodrigues (Des. convocado DO TJ/CE), 3ª Seção, DJe 10/06/2010)
[9] Nesse sentido: “(…) CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO ( CP, ART. 297). CARTEIRA DE HABILITAÇÃO. APREENSÃO PELA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL EM RAZÃO DE BUSCA PESSOAL. NÃO APRESENTAÇÃO DO DOCUMENTO PELO DENUNCIADO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. 1. Constituem crimes o ato de falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro (CP, art. 297) e o ato de fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302 (CP, art. 304). Se o condutor do veículo não fez uso da carteira nacional de habilitação falsificada, que veio a ser apreendida quando da revista realizada por integrante da Polícia Rodoviária Federal, a competência para processar e julgar a ação penal relativamente ao crime do art. 297 do Código Penal é da Justiça estadual. 2. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito de Propriá/SE, ora suscitado”
[10] Cf., nessa linha: BRASILEIRO, Renato. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2015, p.426. Na jurisprudência, dentre outros: STJ – HC: 10447 MG, Rel. Min. VICENTE LEAL, 6ª Turma, DJ 01/07/2002
Autora: Alice Saldanha Villar é Advogada e autora dos livros “Direito Sumular – STF” e Direito Sumular – STJ”, Editora JHMIZUNO, São Paulo, 2015 – Prefácio do Ministro Luiz Fux