A Usucapião por Abandono Familiar nas Uniões Homoafetivas: a culpa no término das relações
O presente trabalho dispõe sobre a modalidade da usucapião que foi inserida pela Lei 12.424/2011 no Código Civil, no âmbito das relações familiares com o término do vínculo, quando envolve a culpa pelo rompimento especificamente nas uniões homoafetivas. Esta modalidade da usucapião está intimamente colacionada ao Direito de família, desta forma, a proposta é desenvolver a melhor interpretação da norma, direcionando suas aplicações com análise doutrinária e jurisprudencial atinente ao assunto abordado.
Por | Tauã Lima Verdan Rangel
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Considerando que os sujeitos envolvidos nas relações familiares, não estão desempenhando alguma atividade que aluda, pela sua particularidade, risco ao direito de outrem, a maioria das situações fáticas impetrará a prova do elemento “culpa”, a teor da regra total definidora do ato ilícito, constante no art. 186 do CC. Deste modo, o ato culposo ou doloso cometido, na esfera do instituto familiar, que tenha ocasionado dano material ou moral a um dos seus integrantes pode provocar a responsabilização civil e até penal.
Como alvo das maiores discussões a respeito do tema, porque traz igualmente a questão da culpa pelo fim do relacionamento, tem na expressão “abandonar o lar”, pré-requisito da usucapião familiar. Entretanto, a culpa ora mencionada foi enterrada com a Emenda Constitucional nº 66/2010, conforme alude por Sindeauz, Fagundes e Farias (2011, p. 04), pois já “extinguiu a necessidade de causa objetiva (lapso temporal) e subjetiva (culpa) de um dos cônjuges para a decretação do divórcio”.
A lei ao fazer referência às palavras casal ou companheiro, incluem-se até mesmo uniões homoafetivas. Deste modo, com aprovação do enunciado nº 500 da V Jornada de Direito Civil no qual: “a modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas” (BRASIL, 2002).
Requisito indispensável para a configuração da usucapião familiar, o abandono de lar, adicionado ao estabelecimento da moradia com posse direta (em geral) pelo outro companheiro ou cônjuge, é não possuir outro imóvel urbano ou rural. Assim, nessa modalidade de usucapião, não se pode analisar o casamento efetivado por separação total de bens, uma vez que o bem necessitará ser de propriedade dos dois parceiros ou cônjuges, onde em tal regime não possua comunicabilidade entre os bens do casal.
Em contrapartida da regra, quando o cônjuge ou companheiro estiver na posse direta do imóvel, igualmente poderá ser distinguida a usucapião familiar nos casos em que o bem está na posse de terceiro, entretanto, deve ser o imóvel de enorme valia para seu sustento ou sustento de sua família.
1- DA DELIMITAÇÃO DO CONCEITO DE “ABANDONO FAMILIAR”: O RETORNO DA CULPA DO FIM DAS RELAÇÕES MATRIMONIAIS E DE COMPANHEIRISMO?
A questão da permanência da culpa na dissolução da sociedade conjugal continua sendo ventilada com grande ênfase, daí a necessidade de se quebrar paradigmas e vencer pensamentos arcaicos de maneira que as relações familiares possam ser observadas pela sociedade e pelo Estado por uma nova visão, que é a do afeto. Do desafeto (culpa) para o afeto inverte-se a lógica posta no Código Civil brasileiro em se tratando de separações judiciais ou de divórcios, pois a Lei Maior expandiu o conceito de família, compreendendo que há uma diversidade dos relacionamentos humanos alinhada pelos princípios da liberdade, da intimidade, do afeto e da dignidade humana. Assim,
[…] terminando com as guerras judiciais entre os casais que não se amam mais, estaremos valorando a dignidade suprimida pelos longos processos judiciais de dissolução da sociedade conjugal, por uma ética embasada na alteridade e no amor, contrária àquela antes constituída. Sabe-se da complexidade do cotidiano familiar. Imputar culpa a um ou outro cônjuge pelo fim do relacionamento conjugal, não traz benefício ou praticidade alguma para a família, para a sociedade e até mesmo para o Estado (PRATES et all., 2009, p.1).
Ainda para Prates et all. (2009, p. 5) com o novo Código civil brasileiro em vários de seus dispositivos “a premissa judicial de se desnudar a intimidade do outro, culpando-o pela ruptura da sociedade conjugal é embasamento jurídico para se alegar sua inconstitucionalidade (grifo nosso) ” está contemplada de forma visível.
Pela Constituição Federal de 1988, o centro das relações familiares tornou-se a antítese da culpa: o afeto. Não pode o legislador acondicionar a atribuição da culpa ao fim do amor, pois a convivência entre pessoas que se amam é complexa, daí, por que provocá-la entre os que já não se amam mais? Travam-se então batalhas judiciais, que serão transferidas ao mesmo tempo para a vida pessoal dos cônjuges, o que afetará não só a eles, mas aos filhos e demais integrantes da família.
O legislador ao expor um arrolamento de motivos para que se quebre o matrimônio, a comunhão de vida, não permitindo ao casal a escolha de sua própria motivação, vem-se então esmagar o princípio da intimidade e da liberdade, com uma única ressalva que foi criada pelo parágrafo único desse artigo, o que possibilita ao juiz, então, escolher outra motivação para a dissolução da sociedade conjugal. Acrescenta Prates et all. (2009):
[…] O simples (ou complexo) fato de deixar de amar nem mesmo é citado como uma das possíveis prerrogativas da quebra do vínculo conjugal. Um elemento objetivo – ruptura e não mais subjetivo – culpa. Fato derivado da vontade das partes, dos princípios da liberdade e da dignidade humana.
Entretanto, a quebra de paradigmas é morosa. Uma construção moral alicerçada na culpa como fundamento para a dissolução do vínculo conjugal, a qual é senso comum há séculos não se desfaz rapidamente.
As relações afetivas não se localizam em um ato único. Fazem parte de um processo contínuo, sucessivo, portanto, torna-se impossível, ou pelo menos arriscado, saber de quem é a culpa ou de como começou o desgaste do relacionamento. Como mensurar uma culpa inicial, uma culpa final, ou uma culpa recíproca durante a convivência?
O Poder Judiciário impõe a solução, punindo quem “errou” por último, desnudando somente a culpa final, sem prospectar o que deu ensejo a este ou outro ato durante o cotidiano conjugal (PRATES et all., 2009, p. 6).
A pessoa que “abandonar o lar” é considerada como culpada no fim do relacionamento e terá que arcar com a perda de sua parcela no imóvel para o outro companheiro ou cônjuge, isto é o que prescreve como requisito da usucapião familiar. Neste ponto de vista, Dias pondera:
[…] de forma para lá de desarrazoada a lei ressuscita a identificação da causa do fim do relacionamento, que em boa hora foi sepultada pela Emenda Constitucional 66/2010 que, ao acabar com a separação fez desaparecer prazos e atribuição de culpas. A medida foi das mais salutares, pois evita que mágoas e ressentimentos – que sempre sobram quando o amor acaba – sejam trazidas para o Judiciário. Afinal, a ninguém interessa os motivos que ensejaram a ruptura do vínculo que nasceu para ser eterno e feneceu (DIAS, 2011, p. 1).
No entanto, no Direito de Família tem-se uma ampla mudança, pois a emenda constitucional nº 66/2010 revoga o instituto da separação judicial, que até então era medida antecipatória do divórcio. No entender de Fernandes:
[…] um dos principais avanços que a nova redação traz é a extinção da separação judicial. Esta apenas dissolvia a sociedade conjugal pondo fim a determinados deveres decorrentes do casamento como o de coabitação e o de fidelidade recíproca, facultando também a partilha patrimonial. Contudo, pessoas separadas não podiam casar novamente, em razão de o vínculo matrimonial não ter sido desfeito. Somente o divórcio e morte desfazem esse vínculo, permitindo-se novo casamento (FERNANDES, 2010, p. 2).
Portanto, não se tem que buscar os motivos pelo fim da união, porque não se tem mais a atribuição da culpa ao cônjuge. Nestes termos, Sindeaux, Fagundes e Farias, em seu magistério, acrescentam que:
[…] a alteração constitucional extinguiu a necessidade de causa objetiva (lapso temporal) e subjetiva (culpa) de um dos cônjuges para a decretação do divórcio. A averiguação da culpabilidade como requisito para a decretação do divórcio era um resquício proveniente do instituto da separação, ora entendida como extinta, e que já fora minimizada pelo Código Civil de 2002, assim como pela doutrina e jurisprudência. Agora, tendo em vista que a Constituição Federal não mais impõe requisitos à sua promulgação, a não ser a intenção de rompimento da convivência por um dos parceiros, inexiste indagação sobre quem é inocente ou culpado (SINDEAUX; FAGUNDES; FARIAS, 2011, p. 04).
Por conseguinte, ressalta-se que o abandono de lar é aquele que é efetuado sem justo motivo. Para exemplificar, observa-se que é possível considerar abandono de lar esta ou aquela situação em que o marido comumente vinha agredindo sua esposa, e por consequência ela se afasta do lar. Neste episódio para a finalidade a que se propõe a usucapião familiar, não é considerado o abandono do lar. Segundo Tartuce,
[…] como incidência concreta deste enunciado doutrinário, não se pode admitir a aplicação da nova usucapião nos casos de atos de violência praticados por um cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono (TARTUCE, 2014, p. 944).
Com o abandono de lar para a lei, igualmente se constatam outros deveres, que tinha este que abandonou o lar, com sua família. O exemplo apresentado tem embasamento no sustento da casa e na assistência material, deixando o outro companheiro ou cônjuge em situação delicada. Transcreve-se, neste raciocínio, o enunciado nº 499 da V Jornada de Direito Civil:
[…] a aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240 – A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito “abandono do lar” deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião (BRASIL, 2012).
Para doutrinadores parte da doutrina pronuncia que o abandono do lar do artigo 1.240-A do Código Civil não concorda com o abandono do lar do direito das famílias. Desta forma, Amorim (2011), a Lei n.º 12.424/11 não tinha como conclusão, simplesmente, incluir o artigo 1.240-A no Código Civil, entretanto, de regrar o Programa Minha Casa, Minha Vida, o qual é direcionado ao direito social de moradia. Ainda, segundo Amorim:
[…] temos que o abandono de lar deve ser analisado sobre a vertente da função social da posse e não quanto a moralidade da culpa pela dissolução do vínculo conjugal. Ou seja, não é de se analisar se o abandono de fato caracterizou culpa, ou se a evadir-se foi legítimo ou até mesmo urgente. Buscará apenas qual dos dois permaneceu dando destinação residencial ao imóvel e pronto, independente da legitimidade da posse e do abandono (AMORIM, 2011, p. 2).
Algumas críticas em relação ao termo abandono de lar são feitas por Gonçalves (2012, p. 274) no qual expõe que “ela ressuscita a discussão sobre a causa do término do relacionamento afetivo, uma vez que o abandono do lar deve ser voluntário, isto é, culposo”. Então, a questão da culpa pelo abandono para que não fosse levado em consideração deveria ser entendido o abandono de lar, previsto na lei, como um simples fato de o ex-companheiro ou do ex-cônjuge não querer mais o bem, portanto compreendendo a expressão “abandono do lar” como “abandono do bem”, e deixando de lado toda a confusão que traz ao mesmo tempo o termo abandono de lar e deste modo também, a culpa pelo abandono. Acrescenta, ainda, Amorim, que:
[…] os requisitos da norma direcionam para utilização maior pela parcela mais pobre da sociedade brasileira (que é também a maioria), já que o imóvel deverá ser o único do usucapiente e não ser maior que 250m2. Observe que o imóvel objeto da norma é aquele bem de família legal, dos mais modestos.
Colimando a pretensão social ao expurgo da culpa do direito de família e a mens legis voltada à Justiça Social, temos que o abandono de lar deve ser analisado sobre a vertente da função social da posse e não quanto a moralidade da culpa pela dissolução do vínculo conjugal.
Ou seja não é de se analisar se o abandono de fato caracterizou culpa, ou se a evadir-se foi legítimo ou até mesmo urgente. Buscará apenas qual dos dois permaneceu dando destinação residencial ao imóvel e pronto, independente da legitimidade da posse e do abandono.
Importante, neste ponto ressaltar que o legislador não exige demonstração de boa-fé ou posse justa (AMORIM, 2011, p.3).
Portanto, é imperativo concluir que o abandono de lar para fins de usucapião é desligado da culpa pelo rompimento da vida a dois. “[…] abandonou o lar […]” é o mesmo que abandonou ao condômino a utilização do bem segundo seu fim social: moradia; ou, mais simples, deixou de ali morar (AMORIM, 2011, p. 3). Assim, toda a questão está atrelada à função social da posse.
2- DA USUCAPIÃO POR ABANDONO FAMILIAR
A Usucapião Familiar, como nova modalidade da usucapião, foi instituída a partir do começo da Lei 12.424/2011, que alterou o Programa Minha Casa Minha Vida, possuindo algumas semelhanças com a usucapião especial urbana, principalmente no que se refere à metragem do imóvel de no máximo duzentos e cinquenta metros quadrados. Conforme o art. 1.240-A do Código Civil que introduziu a nova modalidade de usucapião:
Art. 1.240-A do Código Civil – Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez (BRASIL, 2011).
Assim, o detentor do domínio para ter direito à usucapião do imóvel, necessita desempenhar sua posse por dois anos contínuos e sem oposição do cônjuge ou companheiro retirante. Além do que, o imóvel precisa ter metragem não superior a duzentos e cinquenta metros quadrados, sendo utilizada somente para moradia sua ou de sua família. Por esta nova norma, a principal mudança inserida na Usucapião por Abandono Familiar é a redução do prazo para apenas dois anos.
Neste sentido, a usucapião com menor prazo de prescrição aquisitiva presente no nosso ordenamento jurídico. Para melhor esclarecer, Tartuce (2014, p.943), faz a seguinte alusão; “deve ficar claro que a tendência pós-moderna é justamente a de redução dos prazos legais, eis que o mundo contemporâneo possibilita a tomada de decisões com maior rapidez”. Wesendonck, na contramão de Tartuce (2014), diz que:
[…] é preciso examinar esse exíguo prazo de afastamento do lar como causa de perda da propriedade em conjunto com a disposição constitucional do art. 5º, LIV, segundo o qual ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, pois a complexidade das relações familiares não permite efeitos tão fortes pelo simples decurso do tempo. Veja-se, por exemplo, que esse período de dois anos pode ser o prazo no qual as partes estão definindo se devem dar mais uma chance ao relacionamento ou devem pôr fim ao mesmo (WESENDONCK, 2012, p. 05).
Explica o autor que, esse é um período em que muitos casais separados de fato ainda não adotaram nenhuma medida quanto à definição da partilha de bens porque estão formando a ideia de separação ou de reconciliação. E por conta disso não se pode analisar que o período de indecisão possa reverter na conclusão de abandono da posse, sem que haja um ato natural encaminhado para tal fim. Vale, ainda, esclarecer que, somente o imóvel urbano poderá ser objeto da usucapião por abandono de lar, pois, considera-se a moradia e não o trabalho que se privilegia. Por isso, o art. 1.240-A “brota” em sede de regulamentação do programa do Governo Federal “Minha casa, Minha vida”.
Deste modo, ficou clara a exclusão do imóvel rural dessa modalidade de usucapião. Nada obstante, muito se recrimina a respeito dessa exclusão, considerando que a localização do domicílio de uma pessoa não é juízo crítico comprovante para tratamento diferençado, assinalando, portanto, afronta ao princípio da isonomia. Alega Silva, ao defender a aplicação da legislação também às famílias que vivem na área rural:
Nesse sentido, os efeitos do abandono são os mesmos, independente da localização do imóvel em que ficou residindo o abandonado. Quiçá não sejam mais gravosos na zona rural, na qual as relações sociais mais próximas favorecem que a pecha de abandonado passe a integrar de forma pejorativa a identidade social do que permaneceu no imóvel. Além disso, no Brasil, os índices de baixa escolaridade e alta pobreza são mais acentuados na zona rural, gerando entraves ao acesso à Justiça e a efetivação de direitos (SILVA, 2012, p. 34).
O imóvel ainda deve ser de propriedade do casal que passa a existir com o casamento ou com a união estável, seja ela hétero ou homossexual.
3- DO CABIMENTO DA USUCAPIÃO POR ABANDONO FAMILIAR NAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS
Tendo como pilares de ponderação as bases ideológicas trazidas à baila alhures e como fruto da própria evolução do Direito, constata-se que o novel instituto denominado de usucapião pro-família, nomeado também de usucapião familiar ou por abandono de lar, foi introduzido por meio da Lei Nº. 12.424, de 16 de junho de 2011, acresceu o artigo 1.240-A à Lei Substantiva Civil. Infere-se, em um primeiro momento, que o um instituto em tela decorre dos anseios da sociedade, buscando, precipuamente, ofertar uma resposta ao cônjuge/companheiro abandona, assim como colocar termo a uma situação que prosperava, quando havia os términos dos relacionamentos conjugais, a manutenção de um condomínio, mesmo que houvesse a perda de contato.
Esse novo modelo de usucapião investiga a causa de um dos cônjuges ou companheiros ter se afastado da morada comum. Assim sendo, se existiu abandono do lar, o que lá permanece tornar-se-á o proprietário exclusivo. A usucapião familiar em uma perspectiva construtiva especifica direitos que são passíveis ao indivíduo e em deferência à dignidade da pessoa humana, a saber, no que dispõe ao direito de aquisição de propriedade por famílias provenientes de relações homoafetivas. Nisto, o doutrinador Tartuce (2014) menciona o Enunciado n. 500 da V Jornada de Direito Civil, que prescreve: “A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas” (TARTUCE, 2014, p. 779).
Vê-se assim que, o instituto da usucapião familiar prioriza uma finalidade eminente, uma vez que consagram direitos e garantias constitucionais como: o direito à moradia digna, acessível a todas as classes sociais e respeitando as especialidades de cada família, bem como resguardando que o ex-cônjuge abandonado e sua família, que tenham uma segurança que se refere à sua habitação, considerando que o domínio integral da propriedade é abonado num prazo de tempo considerado como razoável.
Torna-se importante dizer que a usucapião pró-família concorda para o que está previsto no art. 6º da CF/88: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 2013, p. 26).
Assim, a Constituinte entrelaça harmonicamente um destaque à moradia como direito social cujo objetivo principal da usucapião é: a garantia da propriedade por parte daquele que ainda não a detém. Diante das imbricações da usucapião familiar, observa-se que esta ainda incide na doutrina e na jurisprudência como nova temática notável e que ainda é passível de apreciações na doutrina e nos tribunais brasileiros, pois ainda não se tem um acordo sobre o assunto.
O art. 1240-A do CC/02, notoriamente, apresenta falhas e omissões que ajuízam em sua execução, entretanto, ainda assim, não despersonalizam o principal enfoco do dispositivo, que é garantir o direito à moradia em anuência com os preceitos constitucionais sociais, além de, precipuamente, cogitar o princípio da função social, importante na legitimação dos atos civis. Tendo em vista tais males, estes poderão ser simplesmente curados com o apoio da doutrina e, de maneira especial, fruto da atividade dos tribunais, que por meio de jurisprudências, unificam um entendimento que incide em toda a esfera jurídica.
Em todas as demais espécies de usucapião existentes, o principal intento para contrair a propriedade do imóvel é o ânimo de dono, o que quer dizer, a intenção de ter a coisa como própria. Contudo, o mesmo não acontece na usucapião em tela, pois a indagação é a respeito do abandono do lar por parte de um dos cônjuges. Daí, existirem duas correntes que a interpretam o assunto e de formas distintas. A primeira corrente entende que o abandono de lar presente no art. 1.240-A do Código Civil é a mesma expressão abandono do lar mencionada no art. 1.573, inciso IV, do Código Civil, e que, ao tratar da separação judicial, pronuncia que o abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano consecutivo, pode distinguir a impossibilidade da comunhão de vida, lideradas tanto por Maria Berenice Dias, quanto por José Fernando Simão (SIMÃO, 2011).
No entanto, a jurisprudência, por muito tempo, apreendeu que a atitude de deixar o lar conjugal não representa culpa na separação. “Essa sanção também deixou de ser aplicada com o advento da Emenda Constitucional n. 66/2010, que alterou o art. 226, § 6º, da Constituição Federal, passando a admitir o divórcio direto” (VILARDO, 2012, p.49). É oportuno colocar em destaque que os aspectos que diferenciam do novo instituto inserido no Ordenamento Brasileiro dos demais já previstos tem sua base no período exigido, como ainda, na característica do imóvel ser de propriedade do casal. Observa-se que o lapso temporal proporcionado pelo legislador mostra-se insuficiente, quando conferido às demais modalidades formadas na Lei Substantiva Civil e leis extravagantes. Na repercussão, referenda-se que a usucapião pro-família “difere, no entanto, no requisito tempo que na usucapião familiar é de dois anos (sendo de cinco anos para a usucapião pro moradia) e na característica do imóvel usucapienda: a propriedade deve ser do casal” (RANGEL, 2013, p.4). Tartuce leciona neste sentido, com bastante domínio, ao afirmar que:
A principal novidade é a redução do prazo para exíguos dois anos, o que faz com que a nova categoria seja aquela com menor prazo previsto, entre todas as modalidades de usucapião, inclusive de bens móveis (o prazo menor era de três anos). Deve ficar claro que a tendência pós-moderna é justamente a de redução dos prazos legais, eis que o mundo contemporâneo exige e possibilita a tomada de decisões com maior rapidez (TARTUCE, 2011, p. 2).
Denota-se, assim que, tem-se como objetivo principal, permitir que o companheiro ou o cônjuge, que continuou no imóvel, consiga o domínio pleno, posteriormente o decurso do biênio, a contar do abandono do lar pelo outro companheiro, fulminando, por consecutivo, com a situação de condomínio em relação ao imóvel (RANGEL, 2011).
Importante também salientar que a visão de abandono do lar incide no ato voluntário de saída do domicílio conjugal, com também, da ausência de consentimento do outro cônjuge e o decurso de tempo. Cabe frisar que a modalidade em disputa se limita a tão somente o imóvel que pertence ao casal, devendo, com efeito, a ação ser abonada por um dos ex-companheiros ou ex-cônjuges em face daquele que abandonou o lar (RANGEL, 2016).
[…] Ora, com a introdução do artigo 1.240-A no Código Civil vigente, põem-se termo a uma pendência que decorria em razão do término dos relacionamentos conjugais, notadamente quando havia a perda de conta entre os ex-cônjuges/ex-companheiros, consistente na impossibilidade do possuidor exercer todos os poderes inerentes à propriedade, a saber: usar, fruir e dispor, este último em especial. Gize-se, por necessário, que o comando entalhado no artigo 1.240-A compreende tanto cônjuges ou companheiros, incluindo-se as relações homo-afetivas, conforme interpretação estruturada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, como entidade familiar, equiparada à união estável (RANGEL, 2011, p. 4).
Portanto, “não é de se analisar se o abandono de fato caracterizou culpa, ou se a evadir-se foi legítimo ou até mesmo urgente. Buscará apenas qual dos dois permaneceu dando destinação residencial ao imóvel e pronto, independente da legitimidade da posse e do abandono” (RANGEL, 2011, p. 5). Há sim, que se assinalar que a pretensão social a que se destina o dispositivo acrescentado confere uma explanação do abandono do lar emparelhado à partir da função social da propriedade e não coligada ao ideário de culpa pela dissolução do vínculo existente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, a Lei 12.424/ 2011 estabeleceu uma nova modalidade de usucapião, com disposições específicas apontando muitas discussões entre juristas para classificar dentre algumas afirmações, como norma que se adequou as novas realidades na sociedade contemporânea, ou retrocesso no que se refere ao instituto da culpa. No desenvolvimento das novas formas de família, inclusive as homoafetivas, estão amparadas por legislação e proteção constitucional, na seara ao abandono do lar. Insta registar, que o cônjuge responsável pelo abandona do lar e a dissolução da sociedade conjugal, suportará atinente ao caso, sanção patrimonial por meio da perda da propriedade de sua parte no imóvel do pertencente ao casal, independentemente da fração de direito. Diante disso, no âmbito doutrinário e de decisões reiteradas dos Tribunais, concebia direcionamento na aceitação da usucapião entre cônjuges, e o advento do reconhecimento das uniões homoafetivas novas formas familiares na sociedade, o amparo constitucional e a liberdade de gênero pressupõem o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, a interpretação constitucional do artigo 1.240-A permite o entendimento tanto cônjuges ou companheiros como em relações homoafetivas, segundo interpretação do Supremo Tribunal Federal.
REFERÊNCIAS
AMORIM, Ricardo Henriques Pereira. Primeiras impressões sobre a usucapião especial urbana familiar e suas implicações no direito de família. In: IBDFAM: portal eletrônico de informações, 2011. Disponível em: Acesso em: 15 out. 2017.
Código Civil Brasileiro de 2002 e legislação correlata. 2. ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008.
________. Lei nº 12.424 de 16 de junho de 2011. Altera a Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, as Leis nos 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 4.591, de 16 de dezembro de 1964, 8.212, de 24 de julho de 1991, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil; revoga dispositivos da Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. 190o da Independência e 123o da República. Brasília: 16 de junho de 2011.
DIAS, Maria Berenice. Usucapião e abandono do lar: a volta da culpa?. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2017.
FERNANDES, Brenda. O Novo Divórcio (Emenda Constitucional nº 66/2010). In: DireitoNet: portal eletrônico de informações, 2010 Disponível em: . Acesso em 08 out. 2017.
PRATES, Fernanda Torelli Vieira da Cunha; SILVA, Eneleo Alcides da; GUERINI, Eduardo. A culpa na dissolução da sociedade conjugal. In: Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, a. 12, n. 61, fev 2009. Disponível em: . Acesso em 16 nov. 2017.
RANGEL, Tauã Lima Verdan. A admissão da usucapião pró-família nas uniões homoafetivas: uma interpretação extensiva do artigo 1.240-A do Código Civil. In: Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, a. 19, n. 148, mai. 2016. Disponível em:. Acesso em 19 nov. 2017.
________. A proeminência do princípio da função social da família no ordenamento brasileiro. In: Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, a. 16, n. 115, ago. 2013. Disponível em: . Acesso em 01 out. 2017.
________. O Novel Instituto da Usucapião Pro-Família: Comentários ao Artigo 1.240-A do Código Civil. In: Boletim Jurídico, Uberaba, a. 13, n. 1.122, jun. 2013. Disponível https://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=3027>. Acesso em: 17 nov. 2017.
SILVA, Luciana Santos. Uma afronta à Carta Constitucional: usucapião pró-família. In: Revista Síntese Direito de Família, São Paulo, v. 14. n. 71, abr-mail 2012, p. 32-36.
SINDEAUX, Ana Carolina Lucena Freitas; FAGUNDES, Daniel Cabral; FARIAS, Thales Menezes de. Usucapião familiar: problema ou solução? In: Jurisway: portal eletrônico de informações, 25 ago. 2015. Disponível em: . Acesso em 06 nov. 2017.
SIMÃO, José Fernando. Usucapião familiar: problema ou solução?. Disponível em. Acesso em 27 out. 2017.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4 ed. São Paulo: Método, 2014.
VILARDO. Maria Aglaé Tedesco. Usucapião especial e abandono de lar: usucapião entre ex-casal. In: Revista Brasileira de Direito de Família e Sucessões Porto Alegre, n. 27, abr.-mai. 2012.
WESENDONCK, Tula. Usucapião familiar: uma forma de solução de conflitos no direito de família ou (re) criação de outros? Disponível em: . Acesso em 21 out. 2017.
Autores:
Caroline Saturnino Chierici é bacharela em Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos – FAMESC.
Sangella Furtado Teixeira é Bacharela em Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos – FAMESC; Pós-Graduanda em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes UCAM; Pós-Graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá. E-mail: sangellafurtado@hotmail.com
Tauã Lima Verdan Rangel é Doutor (2015-2018) e Mestre (2013-2015) em Ciências Jurídica e Sociais pela Universidade Federal Fluminense; Especialista Lato Sensu em Gestão Educacional e Práticas Pedagógicas pela Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) (2017-2018); Especialista Lato Sensu em Direito Administrativo pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018); Especialista Lato Sensu em Direito Ambiental pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018); Especialista Lato Sensu em Direito de Família pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018); Especialista Lato Sensu em Práticas Processuais Civil, Penal e Trabalhista pelo Centro Universitário São Camilo-ES (2014-2015); Coordenador do Grupo de Pesquisa “Direito e Direitos Revisitados: Fundamentalidade e Interdisciplinaridade dos Direitos em Pauta” – vinculado ao Instituto de Ensino Superior do Espírito Santo (MULTIVIX) – Unidade de Cachoeiro de Itapemirim-ES; Coordenador do Grupo de Pesquisa “Faces e Interfaces do Direito, Sociedade, Cultura e Interdisciplinaridade no Direito” – vinculado à Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Bom Jesus do Itabapoana-RJ; Professor Universitário, Pesquisador e Autor de diversos artigos e ensaios na área do Direito.