maio 16, 2024

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Transmissão Dolosa da Aids – Lesão corporal grave, segundo o STJ

9 min read

Síntese da decisão:

Para a 5ª Turma do STJ, trata-se de lesão corporal grave a transmissão consciente da síndrome da imunodeficiência adquirida (vírus HIV).

Por | Eduardo Luiz Santos Cabette

A decisão foi unânime, acompanhando o voto da Min. Laurita Vaz, de acordo com quem a AIDS enquadra-se perfeitamente no conceito de doença incurável, como previsto no artigo 129, § 2º, II, do CP. Não havendo, assim, que se cogitar de tipificar a conduta como sendo crime de perigo de contágio venéreo (art. 130, CP) ou perigo de contágio de moléstia grave (art. 131, CP).

A Ministra ainda acrescentou que o fato de a vítima ainda não ter manifestado sintomas não exclui o delito, pois é notório que a doença requer constante tratamento com remédios específicos para aumentar a expectativa de vida, mas não para cura.

Fonte:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 160982/DF, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz. Julgado em 17 mai. 2012. Publicado no DJe em 28 mai. 2012. Disponível em:http://stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105876. Acesso em 29 mai. 2012.

COMENTÁRIOS

SÍNTESE: A 5ª. Turma do STJ firmou entendimento segundo o qual a transmissão dolosa do vírus da AIDS configura crime de lesão corporal de natureza gravíssima por enfermidade incurável (artigo 129, § 2º., II, CP).

COMENTÁRIOS AO JULGADO (Eduardo Luiz Santos Cabette): Com o surgimento do fenômeno da AIDS não demorou a ocorrência de reflexos penais. Um primeiro ponto que vem sendo amplamente discutido não somente no Brasil, mas em toda comunidade internacional em termos de Política Criminal é aquele que se refere àtransmissão culposa do vírus nas relações sexuais ou sociais normais. Por exemplo, no sexo inseguro, no compartilhamento de seringas em uso de drogas, na transmissão culposa no âmbito médico – sanitário devido a negligência ou imperícia etc.

O debate gira em torno da conveniência ou não da criminalização da conduta daquele que transmite a AIDS sem dolo, apenas agindo sem as cautelas devidas. Concluindo-se pela necessidade e adequação da criminalização, outro ponto vem a lume, qual seja: seria necessária a criação de um tipo penal específico ou os crimes de lesões corporais e homicídio culposos seriam suficientes para tratar da questão?

Quanto àqueles que agem com dolo, não há muita dissidência quanto à necessidade de criminalização, podendo-se utilizar os tipos penais existentes com a devida subsunção. Já no âmbito culposo também se tem obtido relativa pacificação quanto à necessidade de criminalização das condutas de contaminação operadas no âmbito de atuação médico – sanitário (v. G. Transmissão em transfusões, em atendimentos médicos etc., por negligência ou imperícia profissional).

O maior campo de controvérsia se limita à criminalização e eventual criação de tipos penais específicos para os casos de uso compartilhado de seringas e transmissão pela via sexual, tirante os casos de dolo direto ou eventual e de responsabilidade médica ou de agentes da área da saúde.

Especialmente na Espanha, Alemanha e Áustria essa matéria tem sido aventada, sendo que na última, em 1986 editou-se a chamada “Lei Especial da AIDS”. A doutrina nesses países, com reflexo em nossas terras, se divide basicamente no que a dogmática espanhola convencionou denominar de “línea dura” e “línea blanda”. A primeira defende a criminalização das transmissões culposas e a segunda considera que outras medidas de caráter sanitário, social, educacional, médico etc. Seriam mais adequadas e eficientes. O campo penal seria inclusive contraproducente. [1]

Nada mais óbvio do que o fato de que a criminalização da transmissão culposa da AIDS em nada contribuiria para minorar a epidemia e poderia inclusive ocasionar o afastamento de doentes ou pessoas que suspeitam estarem contaminadas da assistência médica. Parece que realmente no que diz respeito à transmissão culposa fora do âmbito médico – sanitário o Direito Penal deve afastar-se e reduzir-se ao seu aspecto fragmentário e de “ultima ratio”.

Diverso é o caso da transmissão dolosa. Nessa situação apenas é necessário aclarar qual seria a responsabilização penal adequada de acordo com o quadro de infrações penais à disposição do intérprete e aplicador das normas. Parece que, em vista da existência de tipos penais adequáveis à espécie no ordenamento jurídico brasileiro, se pode perfeitamente prescindir da criação de uma legislação especial conforme se optou na Áustria.

Para Mirabete, “há dolo eventual de homicídio na conduta do agente que pratica o coito ou doa sangue quando sabe ou suspeita ser portador do vírus da AIDS (Síndrome de Deficiência Imunológica Adquirida), causando, assim, a morte do parceiro sexual ou receptor. Enquanto não ocorre a morte, ao agente pode ser imputada a prática do crime de lesão corporal grave (art. 129, § 2º., II), já que é inadmissível a tentativa de homicídio com tal espécie de dolo. Entretanto, nada impede que o agente deseje a morte da vítima em decorrência da contaminação, revelando-se então a tentativa de homicídio”. [2]

Portanto, para o autor sob enfoque, haveria em regra dolo eventual de homicídio, mas enquanto a vítima não morre haveria crime de lesão grave por enfermidade incurável.[3] Já se comprovado o dolo direto voltado para a morte, haveria tentativa de homicídio enquanto a vítima permanece viva e homicídio consumado com sua morte.

Greco manifesta-se pela caracterização da tentativa de homicídio sempre que a vítima ainda está viva e homicídio consumado com o evento morte, pois que embora o coquetel medicamentoso possa ampliar em muito a sobrevida, permanece a moléstia sendo letal. [4] Outro não é o pensamento de Capez, arrolando dentre os “meios patogênicos” de prática do homicídio a transmissão do vírus da AIDS ou outros de caráter letal. [5]

Poder-se-ia levantar a hipótese de que o agente deveria responder por “Perigo de Contágio Venéreo” nos termos do artigo 130, CP. Não obstante, tal pensamento não se pode sustentar por inferência do Princípio da Legalidade, vez que a AIDS não é uma doença venérea, embora sexualmente transmissível. Além disso, presente o dolo de lesão, haveria crimes mais graves em concorrência, tais como a tentativa de homicídio e as lesões gravíssimas, de modo que o crime do artigo 130, CP, que é de perigo e subsidiário, seria naturalmente afastado. [6]

Também não prospera a tese de imputação do “Perigo de Contágio de Moléstia Grave”, de acordo com o artigo 131, CP. Embora seja indubitável que a AIDS é uma moléstia grave, quando o agente pretende contaminar alguém, age com dolo de dano, de modo a afastar a incidência do crime de perigo subsidiário, havendo novamente hipóteses de crimes mais graves tais como a tentativa de homicídio ou a lesão corporal gravíssima. [7]

Como se vê a transmissão doloso da AIDS gravita entre a tentativa de homicídio e o crime de lesões gravíssimas por enfermidade incurável.

Tem havido decisões jurisprudenciais em ambos sentidos, inclusive no STJ: [8]

“Se alguém pratica ato capaz de transmitir não apenas moléstia grave, mas moléstia eminentemente mortal e o faz dolosamente, incide em tentativa de homicídio (TJSP, RT 784/587)”.

“Em havendo dolo de matar, a relação sexual forçada e dirigida à transmissão do vírus da AIDS é idônea para a caracterização da tentativa de homicídio (STJ, HC 9.378, j. 18.10.99, vu, DJU 23.10.2000)”.

O atual “decisum” da E. 5ª. Turma do STJ inclina-se pela configuração do crime de lesões corporais de natureza gravíssima por enfermidade incurável (artigo 129, § 2º.,II, CP) e não tentativa de homicídio.

Entende-se que a decisão ora em análise mantém a polêmica sobre a correta tipificação da transmissão da dolosa da AIDS, gravitando, como já se disse, entre as lesões gravíssimas e a tentativa de homicídio. A verdade é que não será a questão da tipificação resolvida jamais somente no meio jurídico. A medicina e o desenvolvimento de tratamentos da AIDS farão com que a tipificação venha a modificar-se com o tempo, podendo mesmo firmar-se como mera doença incurável e não letal. Oxalá um dia se transforme num simples mal curável mediante tratamento médico ordinário e então ter-se-á por configurada mera lesão leve. Mas, no atual estágio, o que se verifica é um simples aumento de sobrevida, permanecendo a AIDS como uma moléstia mortal, de modo que se discorda da interpretação dada pela Corte Superior, entendendo-se que a melhor solução é a da tentativa de homicídio que se pode transmudar de acordo com a ocorrência do resultado morte, em homicídio consumado. Note-se que sendo considerada a transmissão da AIDS de forma dolosa mero crime de lesão corporal gravíssima por enfermidade incurável, eventual morte transmudaria o crime em lesões corporais seguidas de morte e não em homicídio (artigo 129, § 3º., CP). Afirmar que o crime perpetrado por aquele que transmite dolosamente o vírus da AIDS é de lesão corporal, ainda que gravíssima, corresponde a fugir da realidade, pretendendo fazer crer que a referida doença é somente incurável, mas não letal. No atual estágio da medicina isso não é verdadeiro, de modo que num futuro próximo poderia realmente tal postura ser aceita, mas não neste momento e de acordo com a realidade vivida.

REFERÊNCIAS:

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial I – arts. 121 a 212. Coleção Saberes do Direito. Volume 6. São Paulo: Saraiva, 2012.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 2. 12ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

COSTA, José Faria e. Tentativa e Dolo Eventual. São Paulo: Almedina Brasil, 1996.

DELMANTO, Celso, et al. Código Penal Comentado. 8ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume II. 8ª. Ed. Niterói: Impetus, 2011.

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 28ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2011.

SÁNCHEZ, Jesús – Maria Silva. Política Criminal y Sida. Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 18, p. 33 – 43, abr./jun., 1997.

AUTOR DOS COMENTÁRIOS: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação da Unisal.


[1] SÁNCHEZ, Jesús – Maria Silva. Política Criminal y Sida. Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 18, abr./jun., 1997, p. 33 – 43.

[2] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 28ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 29.

[3] Isso devido à convicção do autor de que não existe possibilidade de tentativa no dolo eventual, o que não é pacífico. Há quem entenda que o dolo eventual pode comportar também a figura da tentativa. Ver a respeito dessa polêmica questão: COSTA, José Faria e. Tentativa e Dolo Eventual. São Paulo: Almedina Brasil, 1996, “passim”.

[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume II. 8ª. Ed. Niterói: Impetus, 2011, p. 185.

[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 2. 12ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 25.

[6] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial I – arts. 121 a 212. Coleção Saberes do Direito. Volume 6. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 54 – 55.

[7] Op. Cit., p. 58. Consigne-se que Delmanto afirma que o artigo 131, CP pode ser aplicado ao caso de forma subsidiária quando não ocorrer a contaminação, com o que não se pode concordar, pois haveria sempre as figuras da tentativa de homicídio ou mesmo de lesão gravíssima aplicáveis a essa situação. DELMANTO, Celso, et al.Código Penal Comentado. 8ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 488.

[8] Op. Cit., p. 488.

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